Psicomotricidade para pessoas com deficiência visual: reflexões iniciais

Diversos modelos neurocientíficos e psicomotores tradicionais apresentam o aparato visual humano como uma estrutura nobre do sistema nervoso, corresponsável direto pelo desenvolvimento psicomotor.
Surge um questionamento básico: se o funcionamento do sentido visual e suas estruturas correspondentes no sistema nervoso são decisivas para um otimizado processo de desenvolvimento psicomotor, como isso ocorre quando uma pessoa possui deficiência visual?
Uma opção interessante para iniciar a construção de um raciocínio sobre a psicomotricidade para pessoas com deficiência visual é refletir sobre os apontamentos do filósofo empirista George Berkeley, que publicou em 1709 a "Nova teoria da visão" e a defendeu e explicou em 1773 (CAPPELLO, 2007). Considere uma pessoa que nasceu cega, passou pela infância sem ver absolutamente nada e, na adolescência, realizou uma cirurgia que lhe possibilitou enxergar. Essa experiência cirúrgica ocorreu em 1728 com o médico inglês William Cheselden, que retirou as cataratas de um menino de 13 anos de idade, cego de nascença e que passou a ser vidente (CAPPELLO, 2007). Segundo Cappello (2007, p. 52):

"Os relatos constataram muito mais do que a impossibilidade de reconhecimento imediato daquilo que tocamos naquilo que vemos. O menino não só não foi capaz desse reconhecimento imediato, como também não conseguiu distinguir um objeto visual de outro. Ele não reconhecia a forma das coisas, nem diferenciava uma coisa de outra, qualquer que fosse a distinção entre suas formas ou grandezas. Mas depois de lhe terem dito que coisas eram aquelas cuja forma havia anteriormente conhecido pelo tato, ele as observava cuidadosamente para então ser capaz de reconhecê-las. Mas como ele mesmo dizia, porque travava conhecimento com muitos objetos, esquecia-se de vários, e aprendia e esquecia muitas coisas por dia. Quando várias semanas após ter sido operado, se via confuso diante de um quadro em perspectiva, perguntava qual sentido o enganava, se a visão ou o tato. Além disso, o garoto mostrava não ter qualquer noção de distância. Quando ele viu pela primeira vez, estava tão impossibilitado de julgar distâncias, que pensou, como ele mesmo disse, que todos os objetos tocavam seus olhos como quando senti tocarem sua pele. Tampouco era capaz de considerar o espaço, ou a extensão, como partes menores englobadas por partes maiores".

Ao observar a citação acima, constata-se a presença de vários aspectos psicomotores relacionados a sensação, percepção e processamento da informação visual, a destacar: a) Incapacidade de reconhecimento dos objetos; b) Dificuldade perceptiva na discriminação e diferenciação dos objetos; c) Disformia dos objetos; d) Desintegração somato-sensorial; e) Agnosias. No caso exposto ficou evidenciado as dificuldades adaptativas de um sujeito que se desenvolveu enquanto pessoa com deficiência visual e, posteriormente, reestabeleceu a funcionalidade da visão.

A deficiência visual é conceituada por Mosquera (2000, p. 27) como "perda total ou parcial da visão, necessitando o seu portador, de recursos específicos, método braille, sorobã, bengala e outros, para a alfabetização e socialização". A cegueira pode ser de ordem congênita ou adquirida, sendo a primeira caracterizada como de nascença ou perda visual até os três anos de idade e, a segunda, compreendendo todas as outras formas de perda da visão (MOSQUERA, 2000).

Posto isso, intui-se que as diferentes manifestações de deficiência visual interferem sobre o processo de desenvolvimento psicomotor humano. Também, que as diferentes etapas do ciclo vital, nas quais podem ocorrer perda da visão, influenciam a estruturação e a funcionalidade do aparato visual da pessoa com essa deficiência.

Há várias citações clássicas na literatura psicomotora sobre a relevância da visão em prol do desenvolvimento psicomotor. Ajuriaguerra (1987, p. 5), por exemplo, afirmou que:

"É pela motricidade e pela visão que a criança descobre o mundo dos objetos; é pela manipulação que ela o redescobre. Essa descoberta em relação aos objetos só é válida quando a criança é capaz de largar e pegar, quando se introduz uma distância entre ela e o objeto que manipula, quando o objeto não faz parte da simples atividade corporal indiferenciada. No início, o objeto e o eu se confundem; em seguida o objeto é para si e além de si, para tornar-se posteriormente um objeto em si. No momento da atividade, a criança pode igualmente ser agida com o objeto, ou agir sobre o objeto, ou agir sem objeto: os objetos de ação tornam-se, posteriormente, objetos de experimentação".

Entende-se por intermédio destas colocações, que na ausência total ou parcial da visão, a pessoa com deficiência visual terá dificuldades para apreender os objetos do mundo externo, diferenciá-los entre sí e, também, diferenciá-los de si próprio. Problemas da ordem de noção, orientação e organização espacial são comuns na cegueira, seja ela como for, ou quando for. Notadamente, isso acaba afetando o esquema corporal e a imagem corporal da pessoa com deficiência visual. Assim, tem-se a convicção que o desenvolvimento psicomotor dos cegos é muito distinto dos videntes.

Referências bibliográficas:

AJURIAGUERRA, J. de. Prefácio. In: BERGÈS, J, LÉZINE, I. Teste de imitação de gestos: técnicas de exploração do esquema corporal e das praxias em crianças de 3 e 6 anos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
CAPPELLO, M. A. C. Berkeley: a natureza como linguagem. Revista Mente, cérebro e filosofia. Brasil, p. 50 - 57, 01 abr. 2007.
MOSQUERA, C. Educação física para deficientes visuais. Rio de Janeiro: Sprint, 2000.

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